Já sabemos que as máquinas se misturam com humanos na vida em sociedade. Um exemplo disso são os sistemas bots das inteligências artificiais, que agem como se um ente fosse. Máquinas e humanos se misturam para tomar decisões intelectuais.
Com o desenvolvimento tecnológico atual, deparamo-nos com situações em que não se sabe ao certo quem criou determinado feito – se foi um ente humano ou uma máquina (ou ambos…). É sobre a Autoria das Obras Criadas por Inteligência Artificial que vamos falar neste post, a parte 2 da Oficina de Inteligência Artificial.
Como dito na primeira parte desta oficina, sobre Inteligência Artificial: conceito e interface com PI (Leia mais), as mais recentes técnicas de inteligência artificial fazem ser possível que novas obras sejam criadas através da atividade autônoma das máquinas. Neste sentido, debates sobre a autoria destas obras foram suscitados, sem resposta simples.
E aqui não estamos falando do robô ou da máquina como sendo um objeto de colaboração, porque aí voltaríamos às discussões antiquíssimas acerca da obra fotográfica – se a fotografia seria ou não passível de proteção autoral, uma vez que a materialização da obra foi possibilitada apenas por intermédio da máquina.
Quando discutimos os feitos advindos da IA, falaremos sempre de obra criada pela máquina sem ação direta e proposital do homem. No caso da câmera fotográfica, ela corresponde a um instrumento para a realização da obra, da mesma forma que a caneta é o instrumento do escritor. Não há dúvidas se a autoria deve ser do escritor ou do dono da fábrica de canetas.
Aqui o computador não é mais um instrumento, aqui o usuário não mais raciocina. A máquina desenvolve a obra de forma independente, baseada em informações inseridas previamente e sem relação alguma com o pensamento do programador ou do usuário.
É algo que se distancia, e muito, da contribuição pessoal de um alguém humano. Este humano pode até ter se envolvido com a criação do algoritmo, selecionado os dados, realizado ajustes e iniciado o sistema. Entretanto, o feito final é autônomo, desenvolvido inteiramente pela máquina e sem qualquer interferência humana.
A questão polêmica, ainda sem resposta no direito, se encontra nessa linha tênue: a atuação do robô é considerada autoria para que a futura obra criada, com a devida originalidade, seja protegida nos termos da Lei de Direitos Autorais?
Alguns exemplos reais são muito interessantes:
Crédito: Divulgação/web
Trabalho impressionante de Morris Franken & Bem Haanstra, desenvolvedores da IA que visava replicar o estilo de pintura do clássico pintor holandês Rembrandt.
A ideia era criar um “novo Rembrant” por meio de um sistema que pintasse no mesmo estilo que o pintor e que pudesse, nos tempos atuais, criar obras novas e originais como se fossem do Rembrandt.
Características únicas das pinturas do Rembrant foram “ensinadas” à máquina para que ela, a partir disso, se desenvolvesse como o pintor. Saiba mais sobre o projeto aqui.
Sistema de IA para composição musical. As composições da AIVA já renderam o lançamento de dois álbuns, Genesis (2016) e Among the Stars (2018).
Suas obras seguem uma linha de composições de música clássica, porém são totalmente originais. A condição da AIVA como autora de obras musicais foi inicialmente reconhecida pela SACEM (sociedade de músicos que coleta royalties na França – similar ao ECAD do Brasil), porém, foi seguida de polêmicas posteriores (veremos este caso com mais detalhes nos próximos capítulos da Oficina).
Exemplo de arte feita com o Google Deep Dream/ Divulgação web
Programa de visão computacional da Google que utiliza redes neurais e algoritmos para combinar imagens e criar artes digitais originais, com resultados psicodélicos.
O sistema utiliza redes neurais convolucionais (convolutional neural networks), tipo de rede neural que detecta e enaltece padrões em imagens, e algoritmos de pareidolia – fenômeno psicológico que nos leva a perceber padrões familiares onde eles de fato não existem (por exemplo, ver formas de objetos em nuvens).
O resultado disso são artes originais que se assemelham a sonhos ou a alucinações.
Software criado pelo pesquisador de IA Ross Goodwin, em parceria com o cineasta Oscar Sharp, para atuação no ramo de filmes e obras audiovisuais.
O sistema escreveu um roteiro que deu origem ao curta-metragem Sunspring – cumpre notar que foram necessárias algumas adaptações de diálogo e coerência da história pelos diretores.
O filme foi considerado para premiação no festival SciFi London, porém foi desclassificado quando foram descobertas fraudes na votação online aberta ao público (o sistema Benjamin passou a votar em seu próprio filme, direcionando 36mil votos por hora para o Sunspring).
O Flow Machines é um software de composição musical criado pela Sony Computer Science Laboratories e François Pachet. O sistema criou, por exemplo, uma música que se chama Daddy’s car, baseado no estilo dos Beatles.
Existe uma discussão sobre este software, se ele de fato cria músicas originais ou apenas auxilia os artistas na criação (ou seja, seria uma ferramenta para o autor humano). Debate “Música funcional” v. “Música artística”.
Sistema de IA para composição musical, desenvolvido pela IBM.
Projeto desenvolvido pela Imperial College London composto por uma base de dados com diversos ruídos e pede que voluntários ouçam loops de som gerados automaticamente e os classifiquem com base na preferência, gerando um som como “processo evolutivo sonoro”.
A artista americana utilizou um software chamado AMPER MUSIC para criar um álbum de músicas “am I am”. Outro exemplo de sistemas de IA para criação de letras de músicas é o “These Lyrics do not Exist.”
Embora em alguns casos a autonomia da máquina ainda seja limitada, fato é que em todos os exemplos citados, obras foram criadas por um sistema de inteligência artificial.
Ou seja, estamos falando de um conjunto composto por uma quantidade de dados colossal, cálculos matemáticos precisos, reconhecimento de linguagem, de imagem e traços, apto a materializar um trabalho artístico sem a interferência humana.
É bem evidente, portanto, que a inteligência artificial tende a tocar intimamente a campos da propriedade intelectual. A inteligência artificial compõe, pinta, cria desenhos, scripts, escreve textos e cartas.
Muitos questionamentos surgem desta constatação: Qual é a qualificação e proteção desses trabalhos e o seu regime de proteção? Como acomodar o direito a esta nova realidade? Teremos uma ruptura aos grandes princípios?
No intuito de aflorar o debate, trazemos aqui alguns pensamentos para direcionarmos estas questões – sem a pretensão de cravar uma resposta definitiva.
Na doutrina clássica, se exige a relação do humano criador com o objeto criado. É uma prerrogativa indelével de que o autor seja um humano pensante, sujeito de direitos, sentimentos, dores e vivências.
O direito de autor é um direito natural, que tem por objeto proteger a obra criação do espírito do autor, que nela imprime a sua própria personalidade.
Se a expressão humana e a criatividade são pontos essenciais do direito de autor, seria a proteção autoral aplicável quando o ser humano criador não está mais no centro da atividade criativa? Se as obras do robô forem equiparadas com as dos humanos, é possível a aceitação destas obras dentro da noção de criação do espírito?
Ou seja, há um autor em tais casos? Há uma obra a ser protegida? Dentro dessas questões, desdobram-se outras: o autor seria o criador do sistema, mesmo que não haja causalidade entre originador e resultado e/ou o autor poderia ser o próprio usuário do sistema, que interage e participa indiretamente?
Ademais, um importante pilar não deve ser esquecido: a proteção à propriedade intelectual visa ao estímulo à inovação e à criatividade na forma de benefícios. Isto ocorre como uma maneira de incentivar os autores a produzirem novas obras e seguir alimentando o sistema – mantendo ativa a produção artística e de inovação. Portanto, o sistema é construído para que sejam beneficiados o indivíduo criador e a sociedade.
Destarte, o estímulo da proteção das obras por direito autoral é o de incentivar os autores e bonificar seus feitos, vis à vis à sociedade. Um dos benefícios conferidos ao autor é a exclusividade na exploração econômica da sua obra.
Esta proteção perdura por toda a vida do autor, e ainda é proporcionado um tempo adicional de proteção após a sua morte, para que seus herdeiros possam usufruir destes benefícios. Posteriormente, a humanidade então é presenteada com tais criações, fazendo jus ao domínio público e seus efeitos.
Considerando a autoria da inteligência artificial, qual é o racional em relação ao estímulo à criação? Como estabelecer o benefício econômico? Como medir o tempo de proteção, visto que robôs não possuem vida limitada? E como ficam os herdeiros? (aliás, que herdeiros?).
Cria-se um paradoxo importante quando uma máquina, desprovida de sentimentos, poderia se encaixar neste sistema e usufruir de uma recompensa por sua própria criação.
A verdade é que toda a tutela destas obras é um desafio.
Para ilustrar a problemática do tema, fazemos um paralelo ao instituto das patentes, citando o caso conhecido e paradigmático do sistema de inteligência artificial denominado Dabus, criado pela Universidade de Surrey no Reino Unido.
Esse robô foi desenvolvido com o intuito de adquirir capacidade inventiva. O sistema foi alimentado por dados advindos de diversos ramos de conhecimento e não lhe foi atribuída nenhuma tarefa pré-determinada. Dabus chega a resultados próprios através da leitura dos dados que lhe foram apresentados. Foi apelidado de “máquina de criatividade”.
O robô Dabus desenvolveu dois produtos inovadores – um recipiente de bebidas e uma luz de emergência. O programador do Dabus requereu patentes de invenção para estes dois desenvolvimentos nos EUA, Reino Unido e no Escritório Europeu de Patentes, indicando o Dabus como inventor. Em todas as jurisdições, o pedido de patente foi negado, sob o argumento de que somente pessoas físicas podem ser identificadas como inventoras (naming requirement).
A contra argumentação do programador se fundamenta no princípio basilar do sistema de patentes: o incentivo à inovação, à divulgação de informações e ao desenvolvimento tecnológico e econômico da sociedade.
Apesar destas vantagens não poderem ser usufruídas diretamente pelo robô, na visão do programador, a concessão de patentes indicando a máquina como inventor incentivaria o desenvolvimento de outros robôs inventivos por empresas de tecnologia, portanto, estimulando a inovação e o desenvolvimento da sociedade.
Todas estas questões deverão ser tema das discussões doutrinárias nos próximos anos.
Sabemos que a questão não é simples e que esforços doutrinários estão sendo feitos no mundo todo para que haja uma harmonia legislativa e de entendimentos, afinal os impactos desta nova realidade são globais e simultâneos.
Diante dos atuais desenvolvimentos no campo da inteligência artificial, este tipo de impasse se tornará mais comum, suscitando cada vez mais o seguinte questionamento: é de fato essencial que o autor/inventor de uma obra original seja um ser humano? Indo além, uma obra pode ser protegida sem que haja a identificação de um autor?
Esta questão será tratada na terceira parte de nossa Oficina.