FIQUE POR DENTRO DE TUDO QUE

Acontece

Série Inteligência Artificial: a Essencialidade do Criador Humano
nov 26, 2020

Série Inteligência Artificial: a Essencialidade do Criador Humano

Na terceira parte da nossa série Oficina de Inteligência Artificial, vamos falar sobre a Essencialidade do Criador Humano.

Na segunda edição, abordamos a polêmica atribuição da autoria de obras a sistemas de inteligência artificial e vimos que, em princípio, o sistema de direito autoral é fundado na obrigatoriedade de que o autor seja um ser humano. Mas será que este é realmente um aspecto fundamental e imutável?

Esta é uma discussão controversa e que já está acontecendo em alguns países. Propostas de relativização da essencialidade do criador humano já foram apresentadas, ainda sem consenso.

Direito Autoral

Sabemos que o direito de autor protege a expressão das ideias materializadas, ou seja, fixadas em algum suporte – físico ou não – e de maneira relativamente permanente. Este é o conceito básico de obra passível de proteção autoral.

Consideramos, então, que uma criação protegida por direito autoral é toda aquela que, de forma consciente, foi gerada com um mínimo de domínio intelectual do processo criativo.

De pronto, nos perguntamos: a inteligência artificial é dotada desse mínimo de consciência e sensibilidade? Ou o resultado de sua ação é algo que se parece com uma obra, ontologicamente falando, porém, desprovida da sensibilidade humana?

Uma versão subjetivista do sistema dispõe que a obra deve trazer a marca da personalidade do autor, enquanto uma visão objetiva dispõe que a originalidade deriva do esforço intelectual do autor.

Todo o conceito do direito autoral foi construído para que o objeto protegido – a obra – seja envolvida a seu sujeito criador. Caracteriza-se por uma existência circular em que um é remetido ao outro.

Aspecto Moral da Proteção Autoral

Vemos esta condição ainda impressa em outra regra basilar do direito autoral: o termo de validade da proteção – toda a vida do autor e mais 70 anos após a sua morte.

Outro aspecto que liga a obra à pessoa natural é o aspecto moral da proteção autoral. Sendo assim, é bem evidente que a lei condicionou a proteção das obras à pessoa humana criadora.

Na ausência do ser humano, haveria a ausência da criação. A criação de um robô, portanto, não poderia ser considerada obra devido à ausência das qualidades definidas pela lei – seria, quando muito, considerada mera materialização de um resultado estético emanada de uma máquina.

Diante deste cenário, a doutrina clássica corrobora a necessidade da existência da pessoa natural como autora originária da obra. No entanto, correntes mais modernistas argumentam que a noção clássica de autoria deve ser reinventada.

Essa tese defende um afastamento da visão iluminista de nosso direito, fundada no sentimento de superioridade do ser humano frente às demais espécies. Vemos reflexos da influência iluminista na dificuldade do reconhecimento dos direitos dos animais, por exemplo – e agora volta ao centro do debate nesta questão envolvendo a autoria das máquinas.

Além disso, as leis brasileiras de propriedade industrial e direito autoral foram ambas escritas na década de 1990, época em que estes debates eram muito mais distantes da realidade.

O contexto na Inteligência Artificial

Passemos então a refletir sobre esta hipótese específica de que seja dispensada a condição de um autor criador humano para que haja a proteção autoral. Seria realmente viável eliminar este aspecto?

As cortes internacionais dos Estados Unidos e Austrália relutam a atribuir a proteção se as criações são exclusivamente executadas pela máquina.

A corte europeia também é da opinião que somente as obras originais merecem a tutela da lei, uma vez que haveria somente aí uma criação intelectual que refletiria à personalidade do autor – tornando a intervenção humana indispensável. A França sustenta a mesma posição.

Todas as soluções tradicionais do direito de autor ainda estão muito vinculadas à ideia do ser humano como centro da noção de autor.

Voltemos ao exemplo da inteligência artificial AIVA para ilustrar essa situação, exposto na Parte II desta Oficina.

Foi anunciado na mídia e pelo Ministro da Cultura francês que a SACEM (Societé des auteurs, compositeurs et éditeurs de musique – órgão francês de coleta de royalties similar ao ECAD brasileiro) teria reconhecido a inteligência artificial denominada AIVA como compositora das músicas desenvolvidas pelo programa.

A função da AIVA era de realizar diversas combinações seguidas de erros e acertos até que o sistema pudesse aprender a compor. Foram testadas muitas variantes até que músicas propriamente ditas tenham sido geradas. O resultado foi a criação de obras clássicas originais.

Neste caso, defende-se que o processo criativo foi realizado pela própria máquina. A AIVA teria encontrado, nos seus próprios dados, uma aptidão ou competência e, através de uma experiência própria, alcançado criação da sua música autoral.

Na mesma linha do sistema que buscava replicar o pintor Rembrand (também exemplificado na Parte II), ela capturou conceitos musicais conhecidos, baseada em partituras que já estavam em domínio público.

O Ministro da Cultura francês anunciou em Cannes que a SACEM teria reconhecido a autoria à AIVA – causando grande controvérsia.

No entanto, posteriormente, a SACEM se manifestou no sentido de que autoria somente poderia ser atribuída a uma pessoa física. A atribuição da autoria à AIVA teria ocorrido por uma declaração errônea no registro da música e que seu nome poderia constar apenas como um pseudônimo de uma pessoa física ao realizar o registro. Leia mais a respeito aqui.

Destaca-se, contudo, que o sistema de direitos autorais francês também concede a autoria ao autor pessoa física no momento da criação. Não é necessário, portanto, um registro de música para que ela seja protegida por direitos autorais. No caso, não sendo um requerimento, mas uma declaração, teria havido a presunção de autoria de AIVA.

Em debate, os criadores da AIVA defendem a colaboração entre máquinas e humanos em obras artísticas e ressaltam que ainda precisam de muito auxílio humano para a orquestração e produção musical.

Obviamente as notícias agitaram os doutrinadores franceses que logo se manifestaram em favor do purismo do direito de autor. Os pontos levantados foram:

  1. Necessidade de uma pessoa física humana;
  2. Aspecto da criação do espírito, inalcançável pela máquina;
  3. A inteligência artificial não é dotada de emoções e vivências, suas criações são alcançadas apenas por meio de cálculos;
  4. Não há memórias afetivas ou preexistentes para que a inteligência artificial tenha a consciência ou naturalidade de julgamento;
  5. O robô não tem personalidade jurídica (existem correntes defendendo a criação de uma forma de personalidade jurídica aos robôs.

Muito atrelado ao conceito da autoria está a noção de originalidade das obras.

Originalidade das Obras

A questão da originalidade é essencial para que a obra, no contexto do direito autoral, possa se beneficiar de alguma proteção. A obra deve conter um mínimo de criatividade e um esforço intelectual (se opondo a mero trabalho mecânico), além do controle ao processo criativo.

O autor que possui determinado talento, aporta sua criatividade, julgamento e imprime traços fundamentais de sua personalidade no trabalho.

Geralmente, esta é uma interpretação única, advinda de seu íntimo e residente nas camadas mais profundas de seus sentimentos. Ou seja, mais uma vez a relação vida-memória-personalidade-emoção-talento-expressão são presentes e indissociáveis.

Assim, caso seja possível atribuir autoria a uma obra criada por inteligência artificial, essa obra pode realmente ser considerada original?

Existem propostas de releitura do conceito de originalidade, formulando a seguinte pergunta: a originalidade poderia estar presente na obra em si e não no seu autor? – como os franceses dizem: “uma novidade no universo das formas”. Levando em consideração a noção de liberdade criativa plena, poderia a inteligência artificial produzir obras originais segundo esse conceito?

Uma discussão prática deste aspecto pode ser encontrada no caso do robô Paul, desenvolvido pelo artista Patrick Tresset. Paul é um braço totalmente automatizado com uma câmera adaptada, cujo objetivo é produzir retratos.

Paul, o robô que desenha retratos. Divulgação: Web

Em um teste com 5 (cinco) robôs desenhando ao mesmo tempo, cada um deles produziu um retrato totalmente diferente um do outro – como se cinco pessoas diferentes, com talentos distintos, tivessem feito tais desenhos.

A questão que se propõe aqui é a de que a noção de originalidade é conceito relativamente amplo e que pode abarcar uma hipótese focada na obra e não no autor.

De qualquer forma, estes debates ainda se encontram no campo das ideias. O direito autoral nos moldes que conhecemos hoje necessita da existência de (i) um autor humano e (ii) um caráter original da obra: ambas são condições fundamentais para a proteção dessa obra.

Aliás essa condição é inerente à própria natureza da proteção, a relação obra – criador. Para romper estes paradigmas seria necessária uma reformulação de toda a estrutura do direito autoral e da forma como pensamos este instituto atualmente.

Compartilhe
Cadastre-se em nossa newsletter
e fique por dentro das novidades